terça-feira, 1 de março de 2011

Olho pra frente e tudo que vejo é meu caminho todo vermelho. Um vermelho vivo, iluminado, denso, formado por milhares de pontinhos vermelhos menores.

Pedaços de lata apoiados sobre borracha aglomeram-se tentando formar um fluxo qualquer. Penso que se essa visão do inferno fizesse sentido, esse bando de coisinhas seguindo o fluxo deveria ser como se parece um monte de plaquetas, hemácias e leucócitos fluindo pelo sangue viscoso do nosso corpo. Acontece que essa merda não flui de jeito nenhum!



A chuva cai de leve, finalmente aliviando um pouco o calor do inferno. Ainda assim não é suficiente para amenizar o sofrimento. As gotículas caem bagunçadas pela fraca brisa e eu tento me distrair olhando pela janela e acompanhando as suas trajetórias. Cheiro de chuva, de chão molhado, de terra úmida... de gases tóxicos queimados! Meus poucos momentos agradáveis no inferno se tornam intoxicados. Roubam vida de mim! O CO2 se combina de maneira estável com as minhas hemoglobinas, que antes fazia transporte de oxigênio para as minhas sofridas células. Me intoxicam!

Não há escapatória do inferno. Olho desolada a fileira de pontinhos vermelhos praticamente imóveis. Posso ver, desesperada, que todo o caminho visível de onde estou, está vermelho e truncado. A chuva continua caindo e levando com ela o meu tempo. Meus minutos escorrem como a água que cai pelo vidro. Irrecuperáveis. Imensurável perda de tempo...

A agonia toma conta de mim quando olho o caminho parado e vermelho. Percebo que meu corpo já reclama. Cansaço. Impaciência. Inutilidade. Existência inútil parada ali. Os minutos se esvaem deixando-me mais velha e cansada. Rabujenta e suada, faminta e irritada. Tempo que não volta jamais e que ninguém vai me resarcir.

Os malditos pontos de luz não se movem! E eu percebo dor no corpo, dormência nas pernas, mau jeito na coluna, os lábios torcidos numa enorme tromba de aborrecimento. O ódio crescendo no coração.



De repente barulho. Muito barulho. Outros pontos vermelhos barulhentos e, esses sim, frenéticos e móveis, invadem o espaço intersticial espremido entre as amebas com luzinhas vermelhas que não se movem. Eles abrem caminho e seguem com seu barulho, afastando-se da lata onde me encontro. Todos deveriam mover-se como eles, isso deveria ser um fluxo! Não é.

Tic tac. 40 minutos se passam. Meu corpo reclama da mesma posição. Minha mente reclama do desconforto, da falta de qualidade de vida, da injustiça que é ter que passar por isso todas as noites e a maior parte das manhãs.

Tic tac. Uma hora  e nada flui. Mais meia hora, tudo truncado. A chuva continua sem pressa. Eu tenho pressa. Minha vida se esvai à toa. Perco tempo precioso nesse ócio obrigatório que me aprisiona nessa lata velha.



Apenas vidros molhados de chuva me permitem achar que existe vida e movimento lá fora. As gotas escorrendo me lembram que há algo maior, a Natureza, e uma ordem que faz sentido além desses demoníacos esquemas de vida na cidade grande, dessa vida em sociedade de regime capitalista que o homem moderno se impôs.

No caminho, algumas latas velhas desistem. Ficam pelo caminho. Pontos vermelhos luminosos se vão como o meu precioso tempo. As latas, criações humanas, práticas células de transporte, dessa vez servem como celas. Aprisionam seres humanos que ficam para trás imóveis dentro das latas, deixados de lado pelas outras latas ainda acesas em vermelho e operacionais que passam  pelos esquecidos pedaços de metal sem sequer notá-los. Não são nada demais, não são importantes. São fracos e portanto excluídos do fluxo infernal. Ninguém se importa, contanto que eles saiam da frente...

A chuva, representando, a Natureza, molha a todos do meso jeito. Não distingue latas velhas de latas novas, nem as que são iluminadas em vermelho das que deixaram de funcionar. A Natureza é maior que isso. A ordem natural suplanta a baboseira humana.



Se houvesse um deus nesse inferno olhando lá de cima, com certeza pensaria:
"Que diabos eles fazem lá embaixo? Que cotidiano sinistro essas criaturas se impõem? Por quê preferem se submeter a esses atolamentos, dentro de latas espremidas, irritados, cansados, exauridos além do que gostariam e podem? Não preferiam ser livres?"

"Por quê criam tamanho castigo para si próprios? Não passam tempo com outras criaturas que realmente importam, não fazem as coisas de que gostam, não têm tempo para realizar sonhos, não se divertem, não aproveitam a Natureza? Não têm tempo... Pobres criaturas."


"Ao contrário, eles criam o inferno, vermelho e quente, cheio de luzes e de gases tóxicos, pessoas irritadas, cheias de dor, agurdando o purgatório passar na esperança de chegarem aos seus divinos lares, só por algumas horas antes de lançarem-se no fluxo novamente..."

É, esse deus entende o que a maioria de nos não se dá conta. Nós só seguimos o fluxo, cansados incansáveis, esperando pelos dias melhores em que não mais teremos que seguir o maldito fluxo obrigatório.
Nesses dias poderemos apenas acordar e ficar sentados, à janela olhando a chuva e sorrindo.



Aproveito agora a janela e a chuva para sorrir. Sorrio para a chuva enquanto o fluxo se encarrega de seguir e a lata me leva, seguindo as outras latas, para o meu divino reino do lar. Tenho o tempo e o corpo aprisionados pela indústria da sociedade capitalista, mas a liberdade de meus pensamentos me permite fugir do óbvio.

Fujo então dos sanguessugas do império comercial que acham que me têm por completo. Mas não! Meus pensamentos criam outros caminhos que não aquele do inferno vermelho. E eu sorrio flutuando pra longe dali. Viajo nos porquês do suposto deus e brinco com as gotas de chuva e as cores da noite pelo caminho.

Os pensamentos livres me permitem não enlouquecer naquele inferno vermelho diário e até aproveitá-lo de alguma forma recuperando os minutos roubados de mim...

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