sábado, 22 de maio de 2010


Ecila sentia-se estranha. Acordou em sua cama macia, amparada por travesseiros como em um ninho e, ainda envolta no lençol, abraçou seu próprio corpo e levantou da cama, caminhando pelo quarto com as desconexas pontas do lençol arrastando pelo chão atrás de si. Os longos cabelos castanhos e ondulados caíam por suas costas nuas acariciando sua pele clara, o que dava uma sensação gostosa. Ultimamente ela andava conflituosa, suportando uma carga de sentimentos remexidos dentro de si fortes demais. A todo momento suspirava profundamente e se pegava pensando em si mesma de uma outra forma, mais crítica, mais dura e ao mesmo tempo mais suave, mais condescendente. Era como se fosse duas mulheres em uma só.

Naquela manhã ela acordara diferente. Parecia mais leve, mais suave, mais em paz. Olhou em volta, pelo quarto e percebeu que tudo estava envolto em neblina. Uma densa neblina cobria todo o ambiente fazendo parecer que ela caminhava por entre nuvens branquinhas, e tão densas que quase era possível tocá-las. Fazia um pouco de frio em contraste com sua pele morna. Enrrolou-se um pouco mais no lençol que trazia junto ao corpo e começou a andar devagar por entre a névoa que a cercava. Não enxergava nem o chão onde pisava de pés descalços, mas apesar da estranheza, não sentia medo algum.

Estava curiosa pois, definitivamente, era uma manhã diferente. Não podia ver nada mais ao redor, mas conseguia ver a si mesma com uma nitidez impressionante! Esticou um dos braços pela neblina e ela foi se abrindo, como se não pudesse tocar em seu corpo. Experimentou mexer rapidamente a mão pelo ar e surpreendeu-se ao ver como a neblina se afastava lentamente, abrindo espaço para seus movimentos e seu corpo todo. Puxou a ponta do lençol que a envolvia com o outro braço e movimentou parte do tecido como uma bandeira pendendo de seu braço estendido. Com isso a neblina se afastou, mas só o suficiente para que Ecila visse o movimento e seu braço. O resto do ambiente continuava de um branco impenetrável e nebuloso.

Olhou para baixo, vendo sua camisola cor-de-rosa clara de tecido fino e macio. Sua pele também cor-de-rosa combinava com a roupa e contrastava com os cabelos castanhos que desciam pelos ombros e olhos caramelho que brilhavam apesar da neblina. Abraçou-se ao lençol novamente cobrindo a frente da camisola de alcinhas e ligeiro decote rendado, para manter a pele aquecida. Podia enxergar perfeitamente cada detalhe da roupa e de sua pele, onde podia ver pequenas sardinhas cor de mel.

Subitamente reparou em uma luminosidade intensa vindo de um canto e encaminhou-se para lá. À medida que caminhava, a névoa se abria à sua frente e ela podia enxergar um pouquinho mais a cada passo em direção à luz. Finalmente viu algo que destoava do branco uniforme do local. Era uma cor forte, vibrante, mas ainda embaçada, indistinguível através da névoa densa e branca. Aproximou-se e parou quando já podia identificar a cor. Esperou que a névoa terminasse de se abrir à sua frente para que pudesse enxergar perfeitamente.

Via uma mulher. Vestida em uma sexy camisola vermelha, com belíssimas e extensas rendas que deixavam entrever a suave pele do seio volumoso. Admirou aquela bela mulher à sua frente. Os cabelos eram castanhos e lhe caíam pelos ombros contrastando com a pele alva. Incríveis e intensos olhos castanhos a olhavam de volta. Achava que a estavam admirando também. Aquele era um encontro estranho.

Ecila teve vontade de conhecer melhor aquela mulher que a olhava com o mesmo espanto que ela. Ia dizer alguma coisa quando percebeu que a mulher tinha a mesma intenção pois vira seus lábios desenhados se moverem para dizer algo também. Calou-se e deixou que ela começasse o diálogo, satisfeita por perceber que iria saber mais sobre a mulher de vermelho.

- Olá! - disse ela, com voz intensa e determinada. - Quem é você? - E antes que a mulher vestida de rosa pudesse responder, a outra completou - Meu nome é Alice. Estou nesse lugar escuro há algum tempo. Aqui a penumbra domina, parecendo noite. Mas de repente eu vi essa luz e vim ver o que era. Não gosto que a luz atrapalhe o meu sono durante a noite...

A mulher de rosa aproveitou o silêncio momentâneo da outra e se apresentou:
- Olá, sou Ecila. Eu também estou aqui há algum tempo, meio sem saber por quê. Mas, ao contrário do que você disse, aqui eu vejo tudo branco, como se estivesse no meio de uma nuvem.

Imediatamente Alice retomou a palavra:
- Hum... Você não acha estranho? Agora não estou entendendo nada. Estava dormindo e acordei no meio da noite, mas achei que estava tudo escuro demais. Aí levantei e percebi que enxergava bem apesar disso. É como se eu pudesse ver apenas a mim mesma naquele escuro todo. Mexi os braços e as pernas tentando envolvê-los na penumbra, mas não, eles contnuavam visíveis, como se a omanto da noite se retraísse onde eu estava. O escuro sumia e eu podia me ver claramente. Aí vi essa luz e... blá blá blá....

Enquanto a vibrante mulher falava e gesticulava, Ecila adimirava sua roupa vermelha e pensava se um dia poderia deixar de usar suas simples camisolas cor-de-rosa claras para vestir algo mais sensual e vibrante como aquela camisola. Passou a reparar no rosto de Alice. Olhou a boca desenhada e os olhos castanhos... melhor dizendo... eram cor de mel! Como os seus! Os cabelos também eram parecidos... ondulados... tão semelhantes... não... iguais!

Não podia ser! Mas não tinha outra explicação... Ecila, incrédula, constatou que estava olhando pra si mesma! Sua outra versão, a versão vermelha. Ecila era Alice!

Ela era a versão cor-de-rosa, meiga, carinhosa, meio princesa. Alice era uma mulher exuberante, atraente, forte e de atitude. Mal tinha deixado que ela falasse, tomava todos os espaços, dominava o discurso e se impunha frente a ela. Era impossível não se deixar embebedar pela sensualidade daquelas rendas e do seu voluptuoso corpo coberto de cetim brilhante com reentrâncias que exibiam a pele alva e macia. Era impossível não se deixar atrair pelo seu discurso determinado e mágico. Era como um teatro. Bonito e com conteúdo.

Alice era sim, sua outra metade! Ecila aproximou-se da mulher e estendeu o braço para tocá-la. Ao invés disso, tocou com a mão algo frio e sólido. Havia alguma coisa ali à sua frente que a impedia de tocar na outra mulher. A superficie fria e rígida não era o que esperava tocar, já que pensava em tocar Alice. Era um espelho!

Então o espelho separava Alice e Ecila. Ambas faces de uma mesma mulher. Qual seria a original? Ecila tinha certeza de que era ela mesma. Mas claro que Alice, determinada e dominadora como era, também achava isso.

Nesse momento Ecila fechou os olhos e procurou olhar para dentro de si. Não sabia se alice havia parado de falar ou se ela não estava mais prestando atenção. Olhou para seus sentimentos. Sentia-se forte. Sentia-se mais viva. Era seu momento! Era incrível a oportunidade que estava tendo de ficar frente a frente com ela mesma na versão vermelha e poder contrastar aquilo que via com sua identidade cor-de-rosa delicada.

Sim, sentia-se determinada. Alice iria ouvi-la dessa vez. Pôs-se a falar:

- Alice, acredito que você tenha percebido que somos faces de uma mesma mulher. Somos ângulos de uma só personalidade. - E continuou, já que Alice parecia disposta a ouvir. - Eu sempre estive aqui, entende? Dividimos o mesmo corpo, mas você é que se mostra mais. Assim intensa, cativante, sensual, acolhedora, forte... Mulherão mesmo! Mas eu sou assim. Nós somos assim, cor-de-rosa.

Alice acenava com a cabeça concordando e estudando atentamente a mulher à sua frente. Dona de uma beleza agreste, pele branca com delicadas pintinhas castanhas, os olhos eram de incrível doçura. O jeito de sorrir era mágico e meigo. Alice achava que seria fácil se apaixonar por uma pessoa doce assim. A delicada camisola caía-lhe bem e sua imagem era como a de uma princesa de conto de fadas, exceto que sua fala era por demais determinada, mas nunca rude. Continuou ouvindo Ecila.

- Por muito tempo estive quieta, me escondendo do mundo, com medo de aparecer. Acostumei-me a ser secundária. Fiquei tanto tempo protegida pela sua imagem de mulherão que o fiquei entorpecida e quase não me encontrava mais aqui. Adormeci como a Bela Adormecida. Mas não foi príncipe nenhum que me despertou, mas sim a falta dele. O meu lado vermelho me dominou. Você me dominou Alice. Sim, fez um bom trabalho, mas é hora de você descansar agora. Durma. Prometo que te acordo quando precisar de você.

Alice sorriu mal podendo acreditar. Como poderia sair do poder? Não saberia viver sem ser o vulcão sensual decidido que sempre fora. Como poderia deixar Ecila tomar a frente de sua vida? Mas, foi sua vez de fechar os olhos e olhar para dentro de si. Percebeu que ela tinha razão. Estava cansada. Foram muitas aventuras, muitos anos à frente daquela mulher. Usara seu corpo para despertar desejos em homens e para encantar mulheres. Usara seu carisma para fazer coisas do seu jeito e sua eloquência para convencer. Só que estava cansada, pois tudo saía sempre como ela mesma queria, ou seja, sem surpresas, ou quando não saía como queria, a deixava extremamente irritada ou frustrada.
Sentia-se uma criança boba.

Todos aqueles anos achava que tomava conta de Ecila... E na verdade, tinha se exposto demais. Ela tinha razão. Se desejava mudar o rumo dos acontecimentos daqui pra frente em sua vida, deixaria Ecila tomar conta. Ecila era a real mulher que habitava dentro de si e que, tímida, pouco se expunha às pessoas.

Ecila sorriu, lendo as expressões de Alice e compreendendo imediatamente o que se passava em sua mente, que conhecia tão bem e completou:

- Eu estava adormecida, entorpecida pela sua presença, mas agora estou consciente de que preciso mudar nossa história. Quero ser mais eu mesma e menos você. Quero ser mais rosa e menos vermelha. Acharei um equilíbrio. Sei que você é o mesmo que eu, com alguém desapontada dentro de você. Vá, vá descansar, sensual e bela mulher. E tenha certeza de que essa nova direção que vamos tomar está de acordo com o que sentimos nesse momento. O que sinto me pede que eu seja mais romântica, menos densa, menos espaçosa e mais leve. Seria nosso equilíbrio o pink? Uma mulher sensual e energética, com um quê de alegria infantil e sonhos leves? Vou tentar...

Alice assentiu despedindo-se com o olhar. Parecia satisfeita também. Seu momento contrariado já havia passado e ela sentia a mesma necessidade que Ecila. Um equilíbrio. Deixaria que ela tentasse. Afinal, todo aquele tempo vermelho culminara naquele momento, naquele encontro. Iria descansar agora...

...

A luz da tarde entrava pela janela, forte e pacífica. O nevoeiro sumira, assim como o espelho, a penumbra do outro lado e Alice. A mulher de vermelho não se fora de verdade, ela estava ali, ao seu alcance. Então Ecila reconfortou-se em si mesma. Esfregou os olhos como que acordando daquele momento instrospectivo, espreguiçou-se, podendo agora ver tudo ao seu redor novamente. O mundo estava ali esperando por ela.

Ecila abriu o guarda roupa, tirou dele uma calça rosa choque, colocou uma blusa branca decotada e saiu para o dia, saiu para a vida. Agora estava no controle. Agora mostraria ao mundo como é viver ao seu estilo, um estilo mais rosa.



Musica inspiradora: Numb - Linkin Park





Estou tão cansada de ser o que você quer que eu seja

Estou me sentindo tão descrente, perdida sob a superfície
Não sei o que você espera de mim
Estou sob pressão por ter que imitar você

Estou tão entorpecida que não posso sentir você 
Estou tão cansada...
Tão consciente de que estou me tornando isso...
Tudo que quero é ser mais como eu, e menos como você

E eu sei que posso acabar falhando também
Mas eu sei que você era como eu, com alguém desapontado dentro de você

...

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