segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Dizem que Direito de Família não “dá dinheiro”. Até acredito, mas é o que me interessa, fazer o quê? Então escapei do trabalho no final da tarde pra assistir a uma palestra sobre reprodução assistida e maternidade por substituição, a famosa “barriga de aluguel”.



Estava eu sentada no auditório ainda meio vazio. As cadeiras antigas de espaldar alto, feitas em madeira escura, pés e braços torneados e duras, duras como pedra. Um tablado pequeno bem à frente das cadeiras vazias apoiava a mesa onde ficariam os palestrantes. E eu, que sempre chego antes da hora, estava lá, pensando na vida, olhando aquele monte de quadros com fotografias antigas em preto-e-branco dos ex-presidentes do Instituto dos Advogados Brasileiros.



Então entrou na sala uma velhinha. Puxava de uma perna, claramente com dificuldade de andar, corcundinha e bem baixinha. O rosto não era simétrico e eu logo percebi que era porque um dos olhos era cego, paradão, como uma bolinha de gude embaçada. Eu avaliei a idade da senhora acima de 80 anos, praticamente 90. Sentou ao meu lado determinada.

Olhou pra mim com seu único olho, de um bonito verde claro e puxou conversa. Fiquei impressionada com a clareza de sua fala e de seu espírito. Reclamava do “chofer” do táxi que a deixou no edifício nº 300 ao invés do nº 210, e que ela teve que andar de um pra outro. Eu comentei que os prédios são lado a lado, que ela parou praticamente em frente ao prédio certo, mas ela zangou e disse: “Ah, mas eu não posso tá andando assim!



Gostei dela, me lembrou a minha avó, lúcida e vivida. Sabia o que queria e não se importava com a idade. Senhorinha esperta. Se estava ali, certamente era advogada. Perguntei o que fazia e ela disse que advogava só na área de Família. Ainda na ativa! Que maravilha! – pensei. Como queria ser como ela um dia...

- Uma vez tentei o Crime, mas não gosto não. Só trabalhei com Penal essa vez porque era uma discussão sobre um carrinho de pipocas. Não morreu ninguém. Não é bom mexer com essas coisas de crime não, né? Mas esse caso não tinha morrido ninguém, era só briga pela pipoqueira. Sabe por que eu não gosto de Direito Penal?

Eu neguei e ela completou astuta e, para o meu deleite, abusou da figura de linguagem:
- Porque não estou acostumada a andar em porta-malas de carro! – e arregalou os olhos indicando perigo. Ri com gosto do comentário da senhorinha.


Comentou de diversas palestras a que assistia, sempre buscando novos conhecimentos em sua área de atuação. Elogiou o palestrante do último evento a que comparecera e lembrou-se até do livro e do autor indicados por ele sobre o tema de Sucessões. Invejei-a por dentro. Aquela mulher tinha o tempo que eu gostaria de ter para estudar sobre aquilo que quisesse, e atuava na área que é o meu sonho. Já estava estabelecida e falava do Direito como quem comenta do comportamento de um filho que conhece bem. Delicioso viajar nas palavras dela. Tão lúcida, tão guerreira, tão mulher – apesar de velhíssima.

A palestra começou e paramos de conversar. Eu queria muito conversar mais com aquela advogada pré-histórica, absorver o conhecimento dela, sua experiência de vida e de Direito, mas não pude. Continuei, entretanto, observando-a com o canto dos olhos. Ela tirou um caderno da bolsa que carregava e começou a anotar coisas como “embrião excedentário” (aquele não implantado no útero materno, proveniente de fertilização em laboratório);família monoparental” (composta por apenas um dos pais); “biodireito”, “maternidade por substituição”, “anonimato do doador de esperma”...



Como era doido isso: com certeza ela viveu em uma época na qual, além de nada disso existir, era simplesmente impossível uma mulher ter liberdade suficiente para falar de sexualidade, filiação e maternidade/paternidade como uma escolha do indivíduo. Não era escolha. Não era importante a opinião de uma mulher na sociedade patriarcal machista na qual aquela senhora havia crescido. E ser mãe ainda era um papel obrigatório da mulher. E ainda assim, ali estava ela, do alto dos seus 90 anos, toda entendida, e procurando saber mais sobre esses espinhosos temas.

Enquanto ela escrevia em seu caderno, eu anotava coisas no celular. Ela me olhava talvez incomodada por eu estar “brincando com o celular” ao invés de prestar atenção à palestra. Mas é mais um desses assincronismos da vida que nos fazia anotar a mesma coisa de modos diferentes. Mas secretamente eu me arrependia de não ter trazido a boa e velha caneta com bloquinho.

Claro que, mesmo com toda a astúcia e sagacidade, a velhinha ainda era uma velhinha e assim, exerceu seu direito à velhice dando uma certeira dormida, com direito a ronco e tudo.

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