Estava eu sentada no auditório ainda meio vazio. As cadeiras
antigas de espaldar alto, feitas em madeira escura, pés e braços torneados e
duras, duras como pedra. Um tablado pequeno bem à frente das cadeiras vazias
apoiava a mesa onde ficariam os palestrantes. E eu, que sempre chego antes da
hora, estava lá, pensando na vida, olhando aquele monte de quadros com
fotografias antigas em preto-e-branco dos ex-presidentes do Instituto dos
Advogados Brasileiros.
Então entrou na sala uma velhinha. Puxava de uma perna,
claramente com dificuldade de andar, corcundinha e bem baixinha. O rosto não
era simétrico e eu logo percebi que era porque um dos olhos era cego, paradão,
como uma bolinha de gude embaçada. Eu avaliei a idade da senhora acima de 80
anos, praticamente 90. Sentou ao meu lado determinada.
Olhou pra mim com seu único olho, de um bonito verde claro e
puxou conversa. Fiquei impressionada com a clareza de sua fala e de seu
espírito. Reclamava do “chofer” do táxi que a deixou no edifício nº 300 ao invés
do nº 210, e que ela teve que andar de um pra outro. Eu comentei que os prédios
são lado a lado, que ela parou praticamente em frente ao prédio certo, mas ela
zangou e disse: “Ah, mas eu não posso tá andando assim!”
Gostei dela, me lembrou a minha avó, lúcida e vivida. Sabia
o que queria e não se importava com a idade. Senhorinha esperta. Se estava ali,
certamente era advogada. Perguntei o que fazia e ela disse que advogava só na
área de Família. Ainda na ativa! Que maravilha! – pensei. Como queria ser como ela um dia...
- Uma vez tentei o Crime, mas não gosto não. Só trabalhei
com Penal essa vez porque era uma discussão sobre um carrinho de pipocas. Não
morreu ninguém. Não é bom mexer com essas coisas de crime não, né? Mas esse
caso não tinha morrido ninguém, era só briga pela pipoqueira. Sabe por que eu
não gosto de Direito Penal?
Eu neguei e ela completou astuta e, para o meu deleite,
abusou da figura de linguagem:
- Porque não estou
acostumada a andar em porta-malas de carro! – e arregalou os olhos
indicando perigo. Ri com gosto do comentário da senhorinha.
Comentou de diversas palestras a que assistia, sempre
buscando novos conhecimentos em sua área de atuação. Elogiou o palestrante do
último evento a que comparecera e lembrou-se até do livro e do autor indicados
por ele sobre o tema de Sucessões. Invejei-a por dentro. Aquela mulher tinha o
tempo que eu gostaria de ter para estudar sobre aquilo que quisesse, e atuava
na área que é o meu sonho. Já estava estabelecida e falava do Direito como quem
comenta do comportamento de um filho que conhece bem. Delicioso viajar nas
palavras dela. Tão lúcida, tão guerreira, tão mulher – apesar de velhíssima.
A palestra começou e paramos de conversar. Eu queria muito
conversar mais com aquela advogada pré-histórica, absorver o conhecimento dela,
sua experiência de vida e de Direito, mas não pude. Continuei, entretanto,
observando-a com o canto dos olhos. Ela tirou um caderno da bolsa que carregava
e começou a anotar coisas como “embrião excedentário” (aquele não implantado no útero materno, proveniente de fertilização em
laboratório); “família monoparental” (composta por apenas um dos pais); “biodireito”, “maternidade por
substituição”, “anonimato do doador de esperma”...
Como era doido isso: com certeza ela viveu em
uma época na qual, além de nada disso existir, era simplesmente impossível uma
mulher ter liberdade suficiente para falar de sexualidade, filiação e
maternidade/paternidade como uma escolha do indivíduo. Não era escolha. Não era
importante a opinião de uma mulher na sociedade patriarcal machista na qual
aquela senhora havia crescido. E ser mãe ainda era um papel obrigatório da
mulher. E ainda assim, ali estava ela, do alto dos seus 90 anos, toda
entendida, e procurando saber mais sobre esses espinhosos temas.
Enquanto ela escrevia em seu caderno, eu
anotava coisas no celular. Ela me olhava talvez incomodada por eu estar
“brincando com o celular” ao invés de prestar atenção à palestra. Mas é mais um
desses assincronismos da vida que nos fazia anotar a mesma coisa
de modos diferentes. Mas secretamente eu me arrependia de não ter trazido a boa
e velha caneta com bloquinho.
Claro que, mesmo com toda a astúcia e sagacidade, a velhinha
ainda era uma velhinha e assim, exerceu seu direito à velhice dando uma
certeira dormida, com direito a ronco e tudo.
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