terça-feira, 15 de novembro de 2011

Mas um dia de audiências. Final de curso, sabe como é, estagiário precisa correr atrás das horas exigidas assistindo audiências. E nesse semestre eu não escaparia das criminais. Nem sabia o que esperar, só sabia que Direito Penal me dá um certo asco. Enfrente. Em frente.


Eu e Simone chegamos cedo demais ao tribunal. Dez horas da manhã é cedo para os excelentíssimos desembargadores. A audiência extraordinária estava marcada para as 11h. Então, com fome, e prevendo longas horas sem poder levantar das cadeiras durante a sessão de julgamento, vagamos pelo fórum em busca de um lanche e, no caminho, íamos fazendo amizades e rindo aqui e ali com os simpáticos funcionários que encontramos. Claro que nos perdemos algumas vezes no labirinto de corredores que é o fórum com seus prédios anexos, mas conseguimos voltar para a sala de audiências, pagando até um certo pedágio em forma de uma lata de coca-cola a um dos simpáticos seguranças no caminho.

Devo dizer que o anexo IV do TJ é maravilhoso! Novo, elegante, com mobiliário e decoração modernos, impressionando pelas placas em vidro, piso reluzente, portas de madeira clara,  banheiros limpos, elevadores inteligentes com ascensoristas muito diferentes daquelas infinitas rampas do prédio principal do Tribunal que lembravam os horrorosos "brizolões" da década de 80. Não mesmo! O anexo das varas e câmaras criminais era arrojado e bonito. Fez-me sentir mais confortável em assistir àquela tortura.

Onze da manhã e já estávamos mais do que preparadas para assistir às sessões de julgamento criminal, mas togas vão e vêm, pilhas de processos amontoados em carrinhos entram e saem da sala de audiência e nem sinal do troço começar. Outros estudantes também amontoavam-se na porta da ampla e elegante sala aguardando o início da sessão. Eu olhava pelo vidro e contava pra mais de oito pessoas, todas vestidas de preto, lá dentro. E nada. Ainda bem que existiam os confortáveis sofás pretos de espera nos corredores (ao invés das precárias cadeirinhas do prédio principal).



Quase meio dia e nos deixaram entrar. Sentei com Simone nas confortáveis cadeiras reservadas ao público e comecei a apreciar o ambiente enquanto os outros estudantes se arrumavam em suas cadeiras e o pessoal lá de preto continuava arrumando o que já parecia arrumado. Microfones, computadores com telas finas widescreen, cadeiras ergonômicas, assessores engravatados. A cara do presidente da sessão não parecia nada boa e ele esquadrinhava os estudantes do alto de sua cadeira ao centro da mesa. De repente falou:

- Os senhores são estudantes ou advogados?
Eu não acreditava! Aquele sujeito super importante nos dirigia a palavra? Será que não era para estarmos ali? Será que ele nos pediria para sairmos da sala? Os estudantes aparentemente pensaram como eu, e um momento de hesitação se passou antes que respondêssemos em coro, "estudantes".

Aí a simpatia do Presidente da 6ª Câmara Criminal se mostrou clara e ele continuou puxando assunto conosco enquanto se apresentava como professor também da mesma Instituição nossa. Para o espanto do resto do povo togado que estava do lado de lá da gradinha que os separava dos estudantes, o Presidente pediu a eles que se apresentassem e explicassem como era o procedimento daquela Câmara, para que nós estudantes não ficássemos esperando o início da sessão. Desculpou-se pela demora e explicou que ainda aguardavam a chegada de outros desembargadores.



Sorte grande! Além de simpático, o sujeito com mais poder ali dentro era também professor e resolveu tornar minha experiência uma grande aula. Aquilo que eu achava tortura inicialmente estava saindo melhor que a encomenda. Que delícia, um tribunal recursal julgando só pra mim! Não sei os demais estudantes, mas eu estava bem animada.

A simpática defensora fez a introdução, vindo com sua toga até perto de nós, explicando o que fazia. Depois o Ministério Público se fez presente, pelo PRESENTANTE e não representante (como fez questão de lembrar o Presidente), e discursou um pouco sobre o papel do MP como fiscal da lei nos casos de recursos criminais julgados na Câmara. Apresentaram-se os demais desembargadores que eram quatro. Apenas três deles votavam por vez sendo um o relator, o outro o revisor e, com o papel de desempate, o vogal. O Presidente, por sua vez, apenas era o escriba do acordão (como ele mesmo se entitulou).

Começaram finalmente. O ar condicionado congelante. O Presidente ia passando a palavra aos desembargadores que davam os seus pareceres acerca do recurso e tomava a palavra ao final, redigindo e ditando para nós, a decisão daquele colegiado. Muito organizado e atencioso.

Impressionante é ver o outro lado do crime. Os desembargadores, dentro de sua moderna e confortável sala, sob suas pomposas togas, não vêem o sangue das ruas. O crime fica bonito ali. Nas belas palavras dos ilustres senhores de preto o crime fica distante e técnico. Não parece que houve dor nem violência. Não parecem haver bandidos, criminosos malditos, nem pobres vítimas, vidas destruídas. Ali havia apenas apelante, requerente, réu, e outros nomes que escondiam o real significado do crime das ruas.



O Presidente, em dado momento, interrompeu a discussão dos desembargadores (relator e revisor) sobre um caso de tráfico de drogas (acho) e falou a nós alunos, pedindo que prestássemos atenção nas divergências de opinião dos desembargadores e nas discussões técnicas pois era isso que enriquecia sua alma (conforme suas palavras), era isso que era interessante. Simpático mais uma vez da parte dele, mas isso apenas deixava o crime mais distante.

Os tecnicismos cantavam ali. Os desembargadores discutiam seriamente o entendimento da mais nova súmula, descartavam o depoimento em delegacia dizendo que nem sequer consideravam depoimento da vítima em fase de inquérito (com cara de desdém), liam rapidamente os autos e decidiam se havia ou não prova robusta da existência do crime, recriminando o que consideravam "engano" do juiz de primeira instância. Pra mim parecia um teatro de egos.





Todos muito sabidos, os excelentíssimos senhores doutores desembargadores entoavam suas teses penais pessoais, sem muitas vezes parecerem se importar com a vítima. Reduziam penas baseados na técnica do Direito Penal que é sempre a favor do réu. Não davam provimento a recurso de aumento de pena e expediam alvarás de soltura a torto e a direito. Pra mim parecia um show de horrores. Eu, recentemente vítima de criminosos no Rio de Janeiro, mal podia acreditar como crimes sérios como tráfico de drogas, tentativa de roubo e de estupro poderiam ser banalizados e transformados em apenas dias-multa e serviços comunitários. Mas a técnica penal imperava e era assim que devia ser.


O clímax do terror foi quando colocaram um caso em julgamento de uma mulher que esperava o ônibus quando veio um delinquente fingindo inocência e perguntando se a van iria demorar. A partir dali a pobre mulher foi abordada por mais dois indivíduos que colocaram uma arma em seu peito e tentaram arrastá-la para dentro de uma van, anunciando o assalto, mas querendo levá-la com os três na van, provavelmente para um estupro! A vítima se debateu, caiu no chão, derrubou a arma de plástico de um dos bandidos, gritou e esperneou até que eles desistiram e se foram. Traumatizada para sempre, ela viu a divulgação das fotos dos bandidos no jornal 15 dias depois e foi à delegacia dar a notitia criminis. Até aí, ok. Mas o terror maior veio pra mim quando assisti os desembargadores cogitando não poder considerar-se prova robusta apenas o testemunho da vítima em juízo porque se deu apenas 15 dias após o crime.


Como assim?! Se o testemunho da vítima não pode ser considerado prova, eu não sei o que mais pode! Ninguém pensava na pobre mulher, que apesar de tudo, ainda teve coragem de ir à delegacia começar o processo todo, que passou pela 1ª instância com a condenação dos bandidos e agora estava em sede de 2ª instância, correndo o risco de colocar tudo a perder e liberar os infelizes?!


Eu disse à Simone: "Se esses caras inocentarem esses bandidos estupradores malditos eu levanto e saio! Que absurdo!" Meu coração batia forte. Mas eles consideraram o testemunho da vítima bem definido, consistente, já que ela tinha repetido direitinho os fatos, "individualizando as ações de cada réu" (leia-se: dando nome aos bois), na delegacia e depois em juízo. Então era prova sim, mas baixaram (não sei por quê) as penas dos bandidos. 1 ano e 8 meses apenas. Talvez o motorista da van tenha pegado menos tempo ainda. Isso será convertido nas famosas cestas básicas e trabalho comunitário que eles não vão fazer, ou seja: nada de pena! Triste para a vítima. E triste para mim, que torcia por ela.

E assim foi minha primeira experiência no tribunal criminal. Assisti a dez recursos julgados e saí da sala exausta e gripada (por causa do frio do ar).
O teatro foi bom, como aula foi excepcional, a 6ª Câmara Criminal bem receptiva.
Mas como cidadã, vi o outro lado do crime. E como vítima da violência não gostei do que vi. Foi quando caiu a ficha e eu percebi que é verdade: in dubio pro reo...


É, é ceguinha, tadinha.





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