Código silencioso
Ela está cansada... Não é a primeira vez que se cansa de tudo, que se cansa dele, das esperanças e esperas por ele... Mas dessa vez é o limite!
Sentou-se à frente da tela de LCD e pousou os dedos sobre as letrinhas meio apagadas do teclado. Na área branca do editor de texto fazendo as vezes de papel e com uma caneta invisível movida a toques de dedo, escreve o que seu coração precisa dizer... a ele... a si mesma.
Acabou!! Acabou?
Não tem certeza do que quer escrever para o Super Homem, mas sabe que quer dizer que não esperará mais por ele e seus afazeres. Diz saber que ele já salvou diversas donzelas, mulheres com crianças, que já esforçou-se para salvar o que ele achava que elas tinham... mas que não era com ele. E comparou friamente com a "atitude zero" que ele mantinha por ela.
Suspirou. Tirou os olhos da tela, olhou para as suas mãos e pensou. Lembrou das diversas vezes, ao longo dos anos, que ela tinha se colocado nos braços dele. À exceção da primeira vez em que se reencontraram, o Super Homem, amigo e amante, não veio mais à sua casa, não buscou muito por ela, não priorizou seus momentos juntos. Os abraços e carinho sempre estiveram lá, mas ela é que sempre teve que ir ao seu encontro. Ela era quem arriscava mais, quem adiava sua vida, quem deixava de fazer o que queria para atender aos caprichos dele....
Como podia um homem solteiro, sem emprego e que ainda morava com a mãe ter tantas tarefas importantíssimas na vida que a deixavam sempre para depois? Eram ridículos os 2, 4 ou 6 meses que decorriam entre um encontro e outro. Passavam telefonando-se, marcando encontros que nunca ocorriam e adiando todos eles por causa de resfriados, enguiços do carro, dores de coluna, idas a banco, dores no joelho da mãe, festinhas de aniversário de colegas de colégio há muito afastados, até devolução de um livro na biblioteca da faculdade... Ou seja, qualquer motivo servia para que ele sempre adiasse o momento junto à ela. Bastava um simples desânimo da parte dele e toda a expectativa do colo e do carinho iam por água abaixo...
Mas ela não se irritava mais. Ele era assim. Sempre fora assim.
Acontece que ela não queria mais! Finalmente cansara! Então terminou seu desabafo, deixando por conta dele a decisão sobre continuarem apenas a amizade, ou manterem essa vida de colchão e abraços eternamente sem evoluir, até que um dos dois conhecesse sua alma gêmea, ou a falta dela, qualquer outra que pessoa que pudesse servir de par. Aí os distanciamentos seriam ainda mais longos e as conversas mais veladas, sem nada dizer, para não magoar o outro, além de "estou saindo com uma pessoa...".
Enviou a carta instantânea e ficou satisfeita por ter podido se expressar no silêncio das letrinhas deitadas do teclado. Seu coração passava uma corrente elétrica diretamente para a ponta dos dedos, que ia fazendo surgir a mensagem na tela, cheia de perguntas retóricas e de sentimentos guardados. Ele teria que pensar dessa vez. Ela o convidava a pensar sobre qual era o papel dela em sua vida.
Após esse dia viveu sua vida confortável, fazendo suas coisas normalmente, apenas com aquele sentimento estranho de ter terminado alguma coisa, sem realmente terminar, pois era preciso dois para isso. Ainda assim era bom. Não ficara passiva apenas sentindo as coisas e pensando sozinha, sem achar que devia dizer a ele jamais. Dessa vez agira diferente. Sem dramas. Só buscava os pontos nos lugares certos.
Sabia que não haveria respostas da parte dele. Aí estava o grande problema dessa discussão da relação muda e sem contato físico. O email o encontraria num humor não apropriado, estaria escondido entre diversos outros emails de propagandas e divertidos, e ele não estaria preparado para ler com a profundidade necessária, o que ela escrevera do fundo de seu coração.
Ainda há o seguinte: ela sabia que homens não se importam em realmente ler o que as mulheres escrevem e escrevem... Homens não lêem. Homens não se importam. Ou melhor, acham que não é importante o que está escrito pois tem letras e palavras demais! Homens apenas passam os olhos buscando palavras-chaves e palavras relevantes que diagonalmente cruzem o texto todo, dando a eles alguma compreensão do que ela imprimira ali. Então eles se davam por satisfeitos por terem conhecido parcialmente o chato conteúdo feminino que complicadamente estava exposto diante de seus olhos. E era isso.
Ainda assim ela escreveu. Assim ficava registrado para si mesma. Era na verdade, outro texto explicativo de sua vida para si mesma. (Como esse aqui.)
.....
Um dia pegou seu celular e surpreendeu-se com duas chamadas perdidas. Olhou e no visor aparecia o inimaginável: Super Homem.
Será que ele lera e ainda assim ligara? Achava que ele leria e nunca mais falaria com ela! Ou será que ainda não havia lido? Ele não era nem umm pouco chegado à modernidade dos emails a jato e das comunicações escritas. Preferia sempre ligar e falar e falar sem parar.
Ela não se sentia preparada para discutir aquele assunto com ele. Por isso mesmo resolvera escrever. Mas ele tinha feito o contato telefônico deixando seu nome. Sabia que seria impossível não ligar para ele de volta. Seria rude e mal educado. Além disso, ele continuaria ligando infinitas vezes, de tempos em tempos, até conseguir falar com ela.
Pegou o telefone e ligou.
A voz dele não parecia diferente. A conversa não foi diferente. Ambos gripados, ambos deitados, mais promessas de encontros vazias... Nada diferente.
O que mudou? Mudou foi que ele prometeu vir até ela e passar o dia com ela. Da próxima vez. No próximo encontro (seja lá quando for)...
Humm...
Teria ele lido o texto? Refletido? Ou foi apenas coincidência, essa mudança de atitude?
Ela nunca saberia pois o código silencioso que eles estabeleceram ao longo dos anos de relacionamento aberto não incluía explicações. Explicações eram por demais pessoais e íntimas. Explicações eram mais íntimas do que o sexo sem proteção que sempre fizeram.
Então nada mudou... O código silencioso mantinha o silêncio entre as almas do Super Homem e dela mesma. Não, nada mudaria... Ela desistiu.
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