sábado, 7 de maio de 2011

Mais uma noite, nada de especial. Fui ao riacho onde costumava beber água e ali fiquei a olhar a fauna que me cercava. Poderia me divertir. Quem sabe conhecer um ser novo? A tentativa era sempre interessante. Talvez arrumasse uma luta naquela noite. Não sabia o que podia acontecer, mas definitivamente não ficaria parada à margem do rio aquela noite.

De repente meu nariz captou um cheiro diferente. As orelhas se tornaram alertas. A loba inclinou a cabeça confusa. O que seria aquele ser? Eu ainda não o havia visto pelas redondezas. Decidi investigar. Pratiquei meu melhor sorriso daquela vez. Sentia-me amigável. Aproximei-me do animal estrangeiro. 

Ele tinha profundos olhos castanhos e também parecia amistoso. Balançou a cauda animado com a aproximação da loba. Definitivamente não era um outro lobo. Ele confirmara que estava naquela floresta há pouco tempo. Senti-me dona da situação e passei a contar historias ao meu novo amigo peludo. A noite seguia...



Outro dia nos encontramos novamente. Convidei-o para andar ao meu lado. Ele era realmente diferente de tudo que eu já havia visto. Não parecia predador, nem era presa. Seria alienígena? Aquilo existia? A tarde seguia e ele também me mostrava novidades. Gostei do cheiro dele. Gostei das orelhas caídas dele, diferentes das minhas. Ouvia seus latidos, desfrutava de sua companhia. Percorríamos longas distâncias pela floresta juntos.

Admirava-me com ele a cada passo. Sua espécie era chamada cão vira-lata. Não sabia bem o que era aquilo, mas se viesse dele, parecia bom. Percebi que ele também estava arranhado, velhas cicatrizes. E se mostrava arredio de vez em quando. Eu devia ir com calma se quisesse ganhar sua confiança. Podia mostrar a ele que eu era uma loba diferente. Queria mostrar a ele que eu existia!

Seu olhar podia se tornar extremamente atraente ao olhar meus olhos dourados ao sol. Ele consumia minha presença de uma forma deliciosa. Percebi que o vazio estava sumindo dentro de mim. Aquele cachorro era legal. Queria mantê-lo ao meu lado e viver pra saber onde iríamos juntos...



Como toda loba tem seu dia de presa, um dia eu me senti triste e sozinha na floresta, como há tempos não me sentia. Olhei em volta e só vi escuridão. Repentinamente meus pêlos se arrepiaram... Um predador das antigas estava por perto. Senti aquele velho ódio, desejo de destruição. Mas lembrei do meu amigo vira-lata. Era tão melhor sentir o que eu sentia com ele. Onde estaria ele naquela noite? Eu precisava decidir o que fazer...

Ouvi o rosnado da fera que punha-se a me cheirar. Meu corpo todo retesado, tenso, enojado. Não queria aquela batalha. Não podia mais me fingir de presa. Eu havia mudado. Descobrira o que eu queria, sabia a direção a seguir. Conhecer o cão me mostrara algo novo. Pro inferno com a fera da noite! Rosnei de volta e ela se afastou.

Como se pressentisse o perigo ou pudesse ouvir meu chamado mudo, o fiel vira-latas apareceu entre a folhagem e se deitou ao meu lado. Sensação de proteção. Ele trazia paz ao meu território. E aos poucos, os predadores que me perseguiam foram desaparecendo na noite. E eu via a luz do sol.



Aprendi a confiar no cão ao mesmo tempo que ele foi, com seus passos firmes e mansos, se aproximando mais de mim, a outrora selvagem loba. Viu de longe meu bom coração e me mostrou lentamente o seu. Tínhamos modos diferentes de levar nossa vida selvagem, mas percebemos que nossos objetivos eram os mesmos.

Fizemos um pacto. Seríamos companheiros e nos protegeríamos ao longo do caminho. Andaríamos ao sol e experimentaríamos a noite juntos. Farejamos boas intenções. Desejamos paz e uma vida menos solitária para nós dois. Contra todos os predadores lutaríamos juntos e as presas não perturbaríamos mais. Nossa necessidade era agora desfrutar dessa química entre-espécies que havíamos descoberto e que dava tão certo.

O resto o tempo se encarregaria.
E hoje caminho ao lado do meu fiel companheiro canino, feliz como há décadas não me sentia. O sol esquenta minha pele e, na sua ausência, o cão deita ao meu lado e me envolve com seu calor.

A minha metamorfose agora era como eu quisesse que fosse. Eu mudava de pele e de forma quando bem entendesse. O cachorro me mostrara a simplicidade e me dera espaço para ser eu mesma.



Havia dias que sentia necessidade de correr solta, de explorar novos lugares, e me transformava numa bela égua sedenta de aventuras. Cavalgava pelos campos, pela floresta ou pelas montanhas e ao lado corria o cachorro sorridente. Ele admirava minha crina ao vento e se deleitava com minha sensação de completude ao sentir-me livre. Observava-me trotar de volta à toca da loba.

A loba então se tornava por vezes selvagem e agressiva. Ele olhava de perto, sempre a me lembrar de que era pra ele que eu devia voltar. E eu me destransformava de loba numa simples coelhinha, para me abrigar no calor do seu corpo peludo.



Tinha dias que eu não passava de um bichinho manhoso e seu colo estava logo ali para me abrigar. Nesses dias meu formato era pequenino e delicado. E o cão cuidava de mim. Ele parecia não se importar com o formato que meu corpo ou minha mente tomavam. Parecia não se inquietar demais com minhas alternâncias. E, percebi logo, isso se devia ao fato de que ele era capaz de ver minha alma.

Pude finalmente deixar de ser loba e me tornar mulher de verdade. O vira-latas estava ali ao meu lado e permaneceria. Nossa parceria cada vez mais forte. Íntegro era o cão. Leal. Legal. Essas coisas eram possíveis e esse era o caminho que eu queria até o fim do arco-íris, a companhia de viagem que eu merecia.

Meu bichinho me mostrou que posso andar à margem do perigo pois ele estaria ali; que posso ser eu mesma, porque ele gostava disso; e que eu posso ousar o que eu quiser ousar, pois ele apreciava meus impulsos e instintos.



Ser eu mesma...
Transformar-me quando quiser...
Tornar-me outra sem perder minha essência...
E ter ao lado um companheiro de verdade...
Esse é o caminho que quero seguir!

Vou.
Sigo em frente.
Fazemos a curva.
Andamos juntos, para onde quisermos.

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